domingo, outubro 30, 2011

✽ Pra pensar na vida

Eu vivo pensando na vida. E quanto mais penso na vida, mais percebo o quanto as pessoas não pensam na vida. Não estou dentro da cabeça de todo mundo, eu sei, são conclusões que eu tiro por meio da arte de observar; às vezes mais observo que vivo, então talvez eu tenha alguma conclusão razoável da coisa.
Sinceramente acho que tem gente que nem sabe que existe. Até entendo que toma tempo pra gente perceber que é, mas receio que muitos morrem sem sequer tê-lo feito. Bastaria somente perguntar quem sou eu?, mas bem perguntado mesmo, com sede de saber a resposta, que aí já se daria conta da existência.

É engraçado que quando criança não se pensa na vida. A gente nasce e só muito tempo depois a gente se dá conta que existe. Criança não sabe que existe, ela apenas existe. Mas eu quando criança sabia que existia. Afligiam-me os pensamentos na mente infantil diante de tamanha revelação - eu sou. Um dia, muito criança, cheguei à minha mãe e perguntei expectante "Como é que a gente aprende nosso nome? Você me chamou num canto um dia e me noticiou 'seu nome é Laura'?". Ela mexeu as sobrancelhas (essa parte é conto) e respondeu "Não, filha. Desde sempre te chamei pelo nome e então você cresceu sabendo que se chama Laura". Era o que eu havia suspeitado. "Humm", ponderei na mente infantil. Não obtive o que estava na esperança de encontrar: o dia em que me haviam dito quem eu sou.

Acho que é por isso que é tão turvo existir. Ninguém veio pra gente e contou quem a gente era, assim, num grande dia fatídico que lhe dão identidade. A gente é, vai sendo, e seremos. Em meio a ser a gente vai tirando a conclusão de quem se seja. Me sou.

Embrulha-me o estômago quando ouço aquele conselho seja você mesmo.
Entendo a boa intenção de quem lhe faz uso, mas a verdade é que essa frase me dá arrepio gelado na espinha da lógica existencial. É só ouvi-la que logo me surge a crítica irônica no canto da mente... esse conselho não resolve ninguém (como eu), só complica; traz mesmo é mais indagação, mais inquietude no peito, mais problemática que solução. Seja você mesmo. Ser eu mesmo? Hum. Ser eu, mesmo? Quem mesmo sou? Eu não tenho definição registrada na biblioteca nacional, carta autenticada em cartório, nem papel oficial assinado pelo presidente do mundo dizendo quem sou. Só o que tenho sou a mim mesmo. Eu me tenho e tiro conclusões. Serve?
Ninguém tem pra si perfeita e completa descrição de quem se seja, mesmo talvez achando que sim; os que acham que sim não se exercitam na prática de reflexões existenciais. É por isso que este conselho me causa até riso de desgraça! Escarneço do meu próprio infortúnio. "Seja você mesmo". Eu mesmo quem?! Eu mesmo não existe! Quer dizer, ele não tem muita certeza se existe, ele é meio incerto e duvidoso... por vezes se firma, por vezes debanda pra dubiedade. As demarcações de mim são frágeis e embaçadas. Quem é que eu vou ser quando tiver que ser "eu mesma"? Posso inventá-la?


E então? Quem é que me responde se eu posso inventá-la? Deus? É, acho que é isso que Deus fez mesmo; me deu permissão pra eu me inventar e fui lá e fiz. Quer dizer, eu não fiz, eu vou fazendo, vou me inventando. O problema disso é que fico a tirar e pôr, lá e cá, peças frouxas desse meu invento. Cada dia nasce um desejo de invenção nova; acordo pela manhã e decido quem ser. Ué, não tem carta no cartório. Reinvento-me.

Isso tudo é o faniquito que me dá no peito arfante pela vida. Mas não reclamo, tenho orgulho desse meu estado de questão. É preciso bravura pra escancarar a alma perguntante. Maior bravura que essa só a que se tem pra se permitir perguntar.








"Se tivesse a tolice de se perguntar 'quem sou eu?' cairia estatelada em cheio no chão. É que 'quem sou eu?' provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.
 (pp.30, Clarice Lispector, A Hora da Estrela, Lisboa:Relógio d'Água)

sexta-feira, outubro 14, 2011

✽ Eu preciso sentir saudade

Eu vou ficar aqui, amor
Eu vou ficar aqui até me chamarem
Porque eu preciso da solidão
Eu não sei viver sempre acompanhada
Eu preciso sentir saudade,
Eu preciso sentir na pele a falta.
Eu vou ficar aqui, amor
Até que seja hora de retornar
Porque eu preciso mesmo me atrasar,
Eu não sei viver com hora marcada
Eu preciso ser desavisada
Eu preciso descansar a alma.
Diga a todos que estou aqui, amor
E que talvez eu até reapareça
Trazendo no peito a alegria espessa
De ter passado um tempo só.


sexta-feira, outubro 07, 2011

✽ Devagar e por mais tempo

É difícil estar apaixonado.
Eu não disse que é difícil ficar apaixonado, muito menos que é difícil que eu esteja apaixonada. Digo que é difícil estar, permanecer, ficar em estado de paixão. Não há nada na vida tão espantadiço quanto a tal. O que não quer dizer que eu não esteja apaixonada, ó não, de forma alguma. Eu sempre me viro pra achar algo pelo o que me apaixonar; ora um fragmento de poesia, ora um arranjo musical, ora uma fotografia, ora um estranho na rua, ora a ideia de observar os estranhos na rua, ora uma constatação empírica da existência, ora por mim mesma, ora pela ideia de apaixonar-se... Por essa última eu tenho estranha e vívida flama. A penúltima quase sempre termina em desastre.
Minha paixão está por todo lugar e fragmentada; seus pedaços se espalham pela minha existência sensível. E não pense que quero catá-los, quero mesmo é que se espatifem pela vida. É todo meu o prazer de sua completude fugaz.

Mas o que estava dizendo é que é difícil agarrar a paixão. Ela é sempre um vulto que nos visita com êxtase e excitação e vai embora assim, bem quando a gente achava que tinha encontrado o que queria. É difícil estar apaixonada, esse estado volúvel e incapturável de ser. Deve ser assim porque quando se apaixona quer-se logo consumir a paixão, comer a paixão, digerir e cuspir o resto imprestável da paixão. E pelos três últimos paixão me refiro ao objeto dela. Quer-se logo ser um com o alvo de intenso sentimento. Estou longe de estar falando do ato físico entre dois humanos. Refiro-me a se tornar um com a canção, com a poesia, com a alma (e não o corpo) de outra pessoa. O apaixonado tem sede por fusão. É como fogo: vai consumindo com voracidade o pavio o sentimento quente rumo à combustão total. Ao fim sobrará apenas carvônica carcaça.
É como a música que se ouve até saturar; até já não mais acelerar o coração quando se alcança o ré com sétima aumentada; ou seja, esvaiu-se a paixão. Pior que deixar de se enfervecer com a música é depois se enjoar dela - o que excitava agora enoja. Cruel metamorfose da paixão. É a lagarta e a borboleta ao avesso.

A paixão é débil de autocontrole. Vai louca e descontrolada rumo ao seu fim. Tem tanta vontade e pressa de viver que acaba chegando cedo na morte. De tão veloz é fugidia. Coisa difícil é ter a paixão pra si, só se pode alugá-la. Se a paixão não fosse alugada, seria propriedade de alguém, daí deixaria de ser paixão, seria amor.
Só é paixão se estiver escorrendo por entre duas mãos que fazem conchinha, se apertando pra não deixar escoar por entre as mínimas frestas seu líquido. Todos sabem que o desespero de contê-la é em vão, aliás, possivelmente assim lha escapará mais rápido.

Pois bem, tem que amar devagarinho pra não espantar o esto. Devagar e sempre. Ou ao menos, devagar e por mais tempo; porque a paixão nunca será sempre. Com a exceção do instante - no instante ela é pra sempre. Aquele soneto do Vinícius de Moraes.
Pra fazer durar tem que quase não consumir. Vai-se nas poucas doses que quem sabe não dure por um tanto que tenha sensação de sempre. Quem se dispõe a poupar sua paixão para que ela dure faz verdadeiro sacrifício. Não há maior demonstração de afeto. E é aí - acabou-se - que deixa de ser paixão, pois por haver sacrifício vira amor. É isso que o amor é: sacrifício. A paixão ficou lá atrás, antes da abnegação de si mesmo. Foi incapaz de fazê-lo.

E até que ao final desse texto me convenci de contagotar o sentimento. Quero sim, que fiquem por aí espalhados os fragmentos da minha paixão, mas que seja inteiro e lento o meu amor.