quinta-feira, fevereiro 28, 2013

✽ Aleluia!


Penso tanto na vida
Que fico confusa,
Não cabem em mim
Minhas perguntas,
Não cabe em mim
O mundo.

Se eu tivesse sabido antes,
Eu me preparava
Eu me asseava
Eu me arranjava
Eu me adubava
Eu me alinhavava
Eu me aprestava
Eu me formulava
Eu me despachava.

Se eu tivesse sabido antes,
Eu não diria o aleluia!
Que só sai escapulido
De estar despreparada.

sexta-feira, novembro 30, 2012

✽ Urgência

Estou sentindo uma urgência de te ver
Estou sentindo uma urgência de sair e ir
Ao teu encontro
Sem confronto
Pegar tua mão.

Estou sentindo uma urgência de te ter
Estou sentindo uma urgência de deitar
Ao teu lado
Ficar um bocado
A te pertencer.

Estou sentindo uma urgência de assentar
Estou sentindo uma urgência de chegar
A nossa estação
E a nova estação
Será bela.




"Aí-há, de haver o dia, amor
Em que eu te espero na mesa
Pra tua surpresa
Eu já passei teu café
Aí-há, eu sonho tanto, amor
Que quase acordo ao teu lado
E dói um bocado ver
Que a cama é para um só


"Aí-há", Mallu Magalhães

sexta-feira, julho 20, 2012

✽ Estranha de Mim

Não sou tão delicada quanto pareço.
Bom, eu nem sei o que pareço. Não sei exatamente o que aparento ser; quase ninguém sabe. Ninguém sabe a rigor o que se é para os outros. Talvez seja essa uma longa e doída traição do ser: passar a vida toda achando que se transmite ser algo que não é o que os outros vêem em você. O alguém que você acha que é não é o alguém que os outros te veem ser. Eu sei, estou complicando um pouco, mas o que estou dizendo é que -
Nunca se sabe ao certo a impressão que a gente causa nos outros; não se sabe quem a gente é, em todos os efeitos, pro outro;
É o ponto de vista de fora, externo, que a gente nunca tem de si mesmo. Desde cedo a gente estranha o reflexo no espelho, a própria voz no gravador, os ângulos das fotografias, os vídeos caseiros. Não nos é comum nos assistirmos de fora; não vemos a nós mesmos da perspectiva externa. Quem é esse eu simultâneo a mim? - pensamos ao nos observar num vídeo.
De todos os estranhos, sou-me a maior.

Por isso afirmo, não sou delicada como pareço ser; se é que pareço ser. Não sei o que pareço, não estou externa a mim pra me assistir vivendo - repito -, apesar de ter desejado muito e até feito figa pra que isso acontecesse. Mas nunca saí do corpo. Estou tão perto de mim que não consigo ver; sou vítima de minha própria internalidade. Não sou plateia de mim. Posso até estimar, mas não sei ao certo o que transmito; eu vejo e observo às minúcias todo mundo mas não posso fazer o mesmo comigo. Que ingrato!

Mas pensando bem,
[pensar bem nos salva a alma]
acho que graças a Deus não me estou de fora a me observar. Seria uma desilusão tremenda as descobertas que faria. Prefiro mesmo é ficar nesse estado meio desavisado, irrefletido, convencido de que eu sou eu de um jeito só por dentro e por fora. Talvez se eu me visse não teria tanta coragem de advogar pelas minhas próprias causas; a gente é sempre tão mais elegante e descolado na nossa própria cabeça. Deus abençõe minha alucinação. Penso que prefiro mesmo permanecer nessa miragem pessoal.

Mas o que estava dizendo (meu Deus! que distração!) é que não sou tão delicada quanto eu estimativamente acredito parecer. Às vezes me falta mesmo é paciência pra fazer as coisas com delicadeza. Ser frágil e suave toma frieza, toma calmaria de espírito - e eu sou quente,
Você vê?

quarta-feira, maio 02, 2012

✽ Declaração de Desamor

Eu não te amo, não amo
Não te amo porque és enfado
Não te amo, sou franco sou chato
Só sou chato porque sou cansado

Eu não te amo, não amo
E nem tente me desafiar
Não te amo, sou claro e exato
Sou exausto de tanto amar

Eu não te amo, não amo
Então seja perfeita e distante
Não te amo conforme-se agora
Mesmo sendo por só este instante

E te digo, não amo, não amo
Mesmo sendo tu melodia
És por mim incompreendida
Não te amo, minha poesia.



Ago/2006

segunda-feira, abril 02, 2012

✽ Eterno Minuto de Silêncio

Minha alma se curou e calou-se a poesia. Emudeceram-se senís as dores do desemparo e fez-se quietude no ser.


[Mudo.]


Calaram-se poesia, voz e canção a fazer eterno minuto de silêncio em reverência funerária à aflição de viver. Morreu a dor e toda inspiração com ela. Não resta nada e ninguém a poetizar senão o fim do passado e o gemido desafinado que me inspirava a escrever. Metade da poesia é dor, a outra metade é eloquência. Não estou louca nem estou infeliz, estou entediada e sem conflito, e isso traz inspiração tanto quanto uma placa de cimento.

[Nenhuma.]


Se a placa de cimento caísse na gente e fizesse doer talvez daí nascesse uma poesia.
Enquanto isso descansam preguiçosos os versos dentro do peito. Por ali ficam, jogados ao léu e irresponsáveis, até que chegue uma desventura. Porque metade da poesia é desespero, e a outra metade é arquitetura. Se não tem dilema, não tem poema. A cura de mim mesma me tirou a fundura; sou plana como humana comum que não sabe poetizar. Talvez esse pequeno sofrer de ser rasa ainda me desperte alguns choros pra verbalizar.

[Invento dor pra poder confessar.]


segunda-feira, março 19, 2012

✽ Últimas Vezes

Às vezes olhar pra trás é muito doído. Meditar no passado é assim, uma mistura de saudade e nostalgia doída de não poder voltar o tempo. É um nó na garganta de ter se distanciado do que era tão familiar. É aquela sensação inconclusiva de amor mal-resolvido. O tempo passa tão desapercebido que a gente nem deu adeus. Pode ser que seja porque eu sou uma sentimental, mas acho que há algo agudamente melancólico nisso.

O passado é aquele filme que a gente protagonizou mas hoje assiste da platéia. Ao tentar relembrá-lo, a memória tantas vezes nos escapa; são apenas flashbacks de uma infância sensível; breves cenas engavetadas na mente a nos sussurrar de onde viemos. A memória são restos de vida desconfiáveis; já nem se sabe mais o que de fato aconteceu e o que a nossa mente inventou. Nos trai a memória. O passado é cheio de gente que já não existe mais, porque essa gente se metamorfizou lentamente com o tempo deixando de ser quem era; quando nos piores casos não nos deixam de fato, pra viver distante ou não mais viver. Ele é cheio de cenas e lugares que nunca mais serão os mesmo. São bons amigos que hoje são estranhos e melhores amigos que, com otimismo, nós saúdam feliz aniversário uma vez ao ano. A vida morre aos poucos sem a gente saber.

Ninguém conta pra gente que um dia, drasticamente, olharemos pra trás e nada mais será o mesmo. Despreparados estamos todos nós. Não foi dado aviso ou sequer um momento lúcido e definitivo pra dizer adeus. Foram-se pessoas, lugares, estações da vida e suas particularidades, sem dar tempo de nos despedir. Cruelmente, assim, sem mais nem menos, foi a última vez e eu não soube. Últimas vezes são pequenas mortes.

Certa vez um grande amigo me falou, alguns meses depois de eu ter deixado minha cidade natal, que a minha voz ainda ecoava naquele lugar onde costumava cantar todo fim de semana. Que triste e doce ouvi-lo dizer isso. Será que ecoa mesmo? Será que eu ecôo por aí, por lugares que passei e vi mas que nunca mais visitarei? Será que a minha existência, depois que eu deixar esse mundo, vai ecoar por ele como algum sinal cósmico e latente de que eu existi? É seguir em frente pra sentir saudade, como lamentou Camelo¹. Terão que morrer as velhas décadas, anos, meses, dias, horas, segundos, pra que se siga a jornada. Mas que triste é não poder descer do trem do tempo! Só menos triste é acreditar que um dia ele chega ao seu destino, e que ele é belo.




¹Marcelo Camelo, na letra da canção Janta

sábado, março 10, 2012

✽ Despedida

Meu benzinho
Vem aqui pertinho
Pra eu contar pra você
Que eu vou embora
Daqui.

Amorzinho,
Chega de mansinho
Pra não doer o peito
De te deixar
Pra trás.

Mas vou e volto pra você,
Como a onda que foge do mar
E vem passear na maré
Volto de mansinho pra você.

Não dá muito e volto, amor
Que sozinha eu fico triste sem saber
Se chego devagarinho pra você.

Segue a contar os dias, amor
Que eu vou e volto num pé
Quando o vento da vida quiser.

sábado, janeiro 28, 2012

✽ Ensaio da Invisibilidade

Eu sou invisível. Eu não posso ser vista. O que você vê quando olha em minha direção não sou eu. Não sou eu ali. Eu estou refugiada no que você vê. Estou na verdade pegando abrigo, inquilinada, nessa carne. Eu mesma sou invisível, eu vim do imaterial e não posso ser enxergada - não com olho de nervo óptico, mácula e retina. Mas há olhos que me enxergam. Há alguns olhos nesse mundo que me enxergam. São olhos de gente invisível também.
No mundo invisível se dão muitos encontros; vivo à espera dos meus.

Eu sou invisível a olho não-nu. Eu não posso ser vista, repito. Se pudesse ser vista eu estaria exposta. Se o mundo me visse se encerraria a jornada, resolveria-se a charada, acabaria a graça. Eu deixaria de existir. É por isso que a gente vive de dentro pra fora, assim como quem se abriga no indivíduo social, que tem corpo anda e fala. O ser dentro do corpo não é social. Ele é bicho do mato. Quer dizer, ele é bicho do corpo.

No corpo, os cinco sentidos são portas; mas tem-se a opção de fechá-las. De dentro do corpo, curioso e amedrontado, o bicho do corpo expia o mundo pelas portas dos sentidos. E se não gosta do que experimenta, fecham-se os portões e fica a se encasular. Tranca-se, fechado dentro de mim mesma, a se embalar no consolo solitário. Faz-se a melhor companhia.
É para tanto que a gente se guarda, resguarda, acoberta. Faz-se de tudo pra manter intocável a essência de quem se é; defende-se o eu invisível. Não digo por todos, mas estou eu mesma sempre à vigília de quem sou.

E por ser invisível eu amo as letras. Não tenho cara - minha cara não me é fiel, às vezes julgo - mas tenho voz eloquente a balbubradar¹. Tenho voz e tenho palavras. Palavras que me arrancam da inexistência visual e me adornam de significância no mundo dos invisíveis. Ao final, de tanto discursar, talvez seja eu pra alguém mais memorável que essa gente que se pode ver.




¹balbubradar: mesclagem lexical entre balbuciar e bradar

domingo, novembro 06, 2011

✽ Falha de Comunicação

Nesta vida estamos sentenciados à falha de comunicação. A vida e nossas relações humanas são grandes telefones-sem-fio. Só da mente pra língua já se dá catastrófica distorção da mensagem original - porque não coube em palavras o que se pensou.

O que a gente é e quer dizer nem sempre traduz acuradamente na cachola do outro. Quanto mais plural de sentimento, tom e profundidade for o que se quer dizer, mais pobre e aclichezado vai chegar à percepção do ouvinte. É um carma.
Não sabe o que é frustração aquele que não passou pela situação de querer contar a maior e mais complexa revelação do ser e acabar por se derrotar no sentimento de impotência em face dos limites da linguagem.
Sei o que quero dizer, mas não consigo.
A minha mente pensou numa imensidão de nuances significativas, mas as palavras me deixaram na mão. 
Há vezes que não há palavras no mundo que deem nome ao que se quer falar. O que se quer falar é sempre tão maior do que se pode lançar mão pra exprimir. Substância é sempre tão maior que a forma.
Não tem coisa mais besta que se discutir se tal tom na parede é vermelho ou é laranja. Um individuo defende que o nome da cor é um, outro defende que o nome da cor é outra. Oras bolas, não estão vendo ambos uma mesma coisa? Não é a realidade, pra ambos, a mesma? Afinal, aprender o nome das coisas não é um processo orgânico. Orgânico é enxergar. Dar nome é formalizar. Nome é só nome. O que importa é a substância do que se dá nome. Coisa mais besta é se estapear pelo nome. Eu me estapeio mesmo é pela realidade; ela sim vale a pena. A realidade não tem nome; apenas fragmentos dela têm nome. Esses fragmentos formam um quebra cabeça esburacado e torto. Essa é a linguagem.

Sempre iremos querer dizer algo que nunca virá a ser concebido. Ficarão ali recalcadas as mensagens da mente que não vieram a ser. Ficarão jogados ao canto, abortados, os significados embrionários que não se pôde conceber. É uma metáfora cruel porque muito cruel é estar condenado a significâncias rasas. Sempre haverá uma imensidão de sentido e existência - reflexões, percepções, crenças - dentro de nós que ninguém mais prescrutará. E isso é triste. É existir sem existir - é existir só uma parcela narrável de nós.
Por isso é trabalho tão árduo e digno manejar palavras. Labutar palavras. Trabucar palavras. Quanto mais trabalhada a construção linguística, menor poderá ser o abismo entre signo e substância. Quem ama as palavras é um desesperado por ser compreendido. É um alucinado, um encarniçado por dizer.

O problema é que a gente não é uma simples cor - que todos enxergam igual, mesmo que venham a divergir no nome. Quando dois olham pra nós, nem sempre ambos veem a mesma coisa. Como eu queria ser cor, absoluta e unânime! Mas cor é concreta, a gente não. A gente é invisível. O que é a realidade, afinal?
Por isso é que digo que a vida é uma grande falha de comunicação. Cada ser humano, em sua complexa existência, sofre a cada milésimo de segundo da sua vida uma trágica falha de comunicação com os outros, com o mundo e consigo mesmo. Ele está constantemente a trair sua complexidade; diminuí-la a signos comuns. Existir é tão difícil. Existir é uma explosão de significados - que são tão difíceis de identificar, quanto mais nomear. Daí a gente fica assim todo meio largado, desnomeado.
Não é possível dar nome pra tudo que nos ocorre à existência; daí ela fica ao léu, desordenada. Só as palavras trazem ordem ao caos protuberante de ser e realizar. E quando elas nos deixam na mão? Estou me repetindo, eu sei. Não consigo ser coerente quando estou desvairada.
Só a gente mesmo conhece as estradas da nossa alma; 
Só a gente entende a nossa bagunça e seus motivos. Por isso que nossa existência nunca é completamente compreendida pelo outro. Ninguém conhece a gente do avesso, lá bem dentro do nosso interior. E por viver a vida sem que a gente compartilhe o de mais insondável que há em nós, parece que a gastamos ao passo de meias palavras; fadados a nunca fazer completo sentido. Como eu disse, é como só existir um pedaço de nós - o resto ignora-se porque não tem nome pra ele. Só nos damos conta do que tem nome.
Eu sou um grande desentendimento. Ninguém me entendeu. Tudo o que sou jamais chegará à completa compreensão de um semelhante. (Nenhum de nós nos mostraremos plenos a nenhum de nós.) Só Deus mesmo que viu minha alma. E é por isso que ele é Deus. Só com ele eu não me desentendo. É por isso que ele é Deus.

Tem gente que passa a vida inteira sem falar do que sente, abrir o peito, compartilhar do que tem por dentro. Eu, por minha vez, estou a todo tempo tentando atravessar a espessa e artificial faxada das pessoas e seus comportamentos. Quero logo saber o que está no profundo; tenho urgência de vencer o ralo; tenho urgência de intimidade. Sempre acho que o teatro social não é natural; que a pessoa está disfarçando seus instintos mais essenciais; que como eu ela está à espera de revelar seu coração. Mas acho que a maioria das pessoas, na verdade, são roboticamente naturais em sua desenvoltura social. Já assimilaram com tanta obediência as convenções interacionais que as exercem sem pestanejar. Sou só eu mesmo que de tanto cortejar a solidão virei meio bicho do mato. Sou uma atriz e tanto. Sei interpretar quem eu sou todo dia bem direitinho; faço meu papel de ser com diligência. Não desperto desconfiança.

Uma coisa é verdade: quem quer falar das coisas do sensível, da percepção à flor da pele, do imaginário livre, que fique pronto pra não fazer sentido na cabeça dos outros. Acho que isso na verdade é que é a loucura; ou alguma certa classificação dela - não fazer sentido no mundo do outro.
Às vezes choro porque a vida é overwhelming, não consigo descrevê-la, capturá-la, absorvê-la nessa mera alma humana. A vida mesmo não é humana, só podia ser divina. A existência me escapa à razão; não sei o que estou fazendo, não tenho manual, as demarcações são instáveis, embaçadas, facilmente deslocadas, dependentes de um grupo social delimitar. Quer dizer, quem diz quem a gente tem que ser é mais um bando de desconjurado na vida, tentando encontrar identidade e direção tanto quanto a gente. Que ironia!
Pois bem, pode anotar na prancheta aí, doutor, que eu vejo o mundo como poucos veem. A sociedade me é estranha e agressiva, não entendo pra quê tanta maldade, amargura, perversão. A vida às vezes é estranha. A morte é estranha. Talvez a vida após a morte seja estranha. Não! Depois da morte tudo fará sentido! Verei a Deus como ele é, e serei completo! Brada o meu coração com viva esperança.


Não há saídas para o limbo das meias palavras. Talvez um texto bem viajado de Clarice faça fazer sentido algo de profundo. Mas quem é que a entende? São poucos os que realmente a entenderam. Popular mesmo viram as frases banais (que na verdade não foram banais; qualquer clichê vindo de Clarice, desconfie). Quem entendeu o que Clarice escreveu viu a alma dela: alguém completa e urgentemente desesperada pelo sentido da vida, pelo sentido de ser. Enxergou no mundo o que ninguém mais enxergou. Fez das letras um breve alívio da pressão grave e doída de existir à perguntar o que afinal a vida é. Acho que eu vi um pouco da alma de Clarice. E vi a minha na dela.

Talvez a angústia pulsante de enriquecer de significado o ser seja só pra essa vida. Céu mesmo seria aquele lugar em que a linguagem não tem limite. Imagine! Cores, sons, signos diversos evocariam as mais indizíveis sensações e mensagens na imaginação; sem barreiras! Quero ir pra esse céu logo.
Mas por enquanto fico predizendo o céu fazendo prosa poética. É por isso que escrevo; pra ter vislumbres fugazes do céu linguístico que eu inventei e torço pra ser real. Enquanto isso preciso acreditar que alguém vai ler o que escrevi e me entender; vai visitar meu interior por alguns parágrafos; vai se fazer uma pergunta existencial qualquer depois de decifrar meus versos. Talvez se eu passar a vida toda a escrever, ao final dela, assim bem num final derradeiro, eu consiga dar um curto e comedido suspiro de satisfação de ter dito alguma coisa de profundo.

domingo, outubro 30, 2011

✽ Pra pensar na vida

Eu vivo pensando na vida. E quanto mais penso na vida, mais percebo o quanto as pessoas não pensam na vida. Não estou dentro da cabeça de todo mundo, eu sei, são conclusões que eu tiro por meio da arte de observar; às vezes mais observo que vivo, então talvez eu tenha alguma conclusão razoável da coisa.
Sinceramente acho que tem gente que nem sabe que existe. Até entendo que toma tempo pra gente perceber que é, mas receio que muitos morrem sem sequer tê-lo feito. Bastaria somente perguntar quem sou eu?, mas bem perguntado mesmo, com sede de saber a resposta, que aí já se daria conta da existência.

É engraçado que quando criança não se pensa na vida. A gente nasce e só muito tempo depois a gente se dá conta que existe. Criança não sabe que existe, ela apenas existe. Mas eu quando criança sabia que existia. Afligiam-me os pensamentos na mente infantil diante de tamanha revelação - eu sou. Um dia, muito criança, cheguei à minha mãe e perguntei expectante "Como é que a gente aprende nosso nome? Você me chamou num canto um dia e me noticiou 'seu nome é Laura'?". Ela mexeu as sobrancelhas (essa parte é conto) e respondeu "Não, filha. Desde sempre te chamei pelo nome e então você cresceu sabendo que se chama Laura". Era o que eu havia suspeitado. "Humm", ponderei na mente infantil. Não obtive o que estava na esperança de encontrar: o dia em que me haviam dito quem eu sou.

Acho que é por isso que é tão turvo existir. Ninguém veio pra gente e contou quem a gente era, assim, num grande dia fatídico que lhe dão identidade. A gente é, vai sendo, e seremos. Em meio a ser a gente vai tirando a conclusão de quem se seja. Me sou.

Embrulha-me o estômago quando ouço aquele conselho seja você mesmo.
Entendo a boa intenção de quem lhe faz uso, mas a verdade é que essa frase me dá arrepio gelado na espinha da lógica existencial. É só ouvi-la que logo me surge a crítica irônica no canto da mente... esse conselho não resolve ninguém (como eu), só complica; traz mesmo é mais indagação, mais inquietude no peito, mais problemática que solução. Seja você mesmo. Ser eu mesmo? Hum. Ser eu, mesmo? Quem mesmo sou? Eu não tenho definição registrada na biblioteca nacional, carta autenticada em cartório, nem papel oficial assinado pelo presidente do mundo dizendo quem sou. Só o que tenho sou a mim mesmo. Eu me tenho e tiro conclusões. Serve?
Ninguém tem pra si perfeita e completa descrição de quem se seja, mesmo talvez achando que sim; os que acham que sim não se exercitam na prática de reflexões existenciais. É por isso que este conselho me causa até riso de desgraça! Escarneço do meu próprio infortúnio. "Seja você mesmo". Eu mesmo quem?! Eu mesmo não existe! Quer dizer, ele não tem muita certeza se existe, ele é meio incerto e duvidoso... por vezes se firma, por vezes debanda pra dubiedade. As demarcações de mim são frágeis e embaçadas. Quem é que eu vou ser quando tiver que ser "eu mesma"? Posso inventá-la?


E então? Quem é que me responde se eu posso inventá-la? Deus? É, acho que é isso que Deus fez mesmo; me deu permissão pra eu me inventar e fui lá e fiz. Quer dizer, eu não fiz, eu vou fazendo, vou me inventando. O problema disso é que fico a tirar e pôr, lá e cá, peças frouxas desse meu invento. Cada dia nasce um desejo de invenção nova; acordo pela manhã e decido quem ser. Ué, não tem carta no cartório. Reinvento-me.

Isso tudo é o faniquito que me dá no peito arfante pela vida. Mas não reclamo, tenho orgulho desse meu estado de questão. É preciso bravura pra escancarar a alma perguntante. Maior bravura que essa só a que se tem pra se permitir perguntar.








"Se tivesse a tolice de se perguntar 'quem sou eu?' cairia estatelada em cheio no chão. É que 'quem sou eu?' provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.
 (pp.30, Clarice Lispector, A Hora da Estrela, Lisboa:Relógio d'Água)