domingo, novembro 06, 2011

✽ Falha de Comunicação

Nesta vida estamos sentenciados à falha de comunicação. A vida e nossas relações humanas são grandes telefones-sem-fio. Só da mente pra língua já se dá catastrófica distorção da mensagem original - porque não coube em palavras o que se pensou.

O que a gente é e quer dizer nem sempre traduz acuradamente na cachola do outro. Quanto mais plural de sentimento, tom e profundidade for o que se quer dizer, mais pobre e aclichezado vai chegar à percepção do ouvinte. É um carma.
Não sabe o que é frustração aquele que não passou pela situação de querer contar a maior e mais complexa revelação do ser e acabar por se derrotar no sentimento de impotência em face dos limites da linguagem.
Sei o que quero dizer, mas não consigo.
A minha mente pensou numa imensidão de nuances significativas, mas as palavras me deixaram na mão. 
Há vezes que não há palavras no mundo que deem nome ao que se quer falar. O que se quer falar é sempre tão maior do que se pode lançar mão pra exprimir. Substância é sempre tão maior que a forma.
Não tem coisa mais besta que se discutir se tal tom na parede é vermelho ou é laranja. Um individuo defende que o nome da cor é um, outro defende que o nome da cor é outra. Oras bolas, não estão vendo ambos uma mesma coisa? Não é a realidade, pra ambos, a mesma? Afinal, aprender o nome das coisas não é um processo orgânico. Orgânico é enxergar. Dar nome é formalizar. Nome é só nome. O que importa é a substância do que se dá nome. Coisa mais besta é se estapear pelo nome. Eu me estapeio mesmo é pela realidade; ela sim vale a pena. A realidade não tem nome; apenas fragmentos dela têm nome. Esses fragmentos formam um quebra cabeça esburacado e torto. Essa é a linguagem.

Sempre iremos querer dizer algo que nunca virá a ser concebido. Ficarão ali recalcadas as mensagens da mente que não vieram a ser. Ficarão jogados ao canto, abortados, os significados embrionários que não se pôde conceber. É uma metáfora cruel porque muito cruel é estar condenado a significâncias rasas. Sempre haverá uma imensidão de sentido e existência - reflexões, percepções, crenças - dentro de nós que ninguém mais prescrutará. E isso é triste. É existir sem existir - é existir só uma parcela narrável de nós.
Por isso é trabalho tão árduo e digno manejar palavras. Labutar palavras. Trabucar palavras. Quanto mais trabalhada a construção linguística, menor poderá ser o abismo entre signo e substância. Quem ama as palavras é um desesperado por ser compreendido. É um alucinado, um encarniçado por dizer.

O problema é que a gente não é uma simples cor - que todos enxergam igual, mesmo que venham a divergir no nome. Quando dois olham pra nós, nem sempre ambos veem a mesma coisa. Como eu queria ser cor, absoluta e unânime! Mas cor é concreta, a gente não. A gente é invisível. O que é a realidade, afinal?
Por isso é que digo que a vida é uma grande falha de comunicação. Cada ser humano, em sua complexa existência, sofre a cada milésimo de segundo da sua vida uma trágica falha de comunicação com os outros, com o mundo e consigo mesmo. Ele está constantemente a trair sua complexidade; diminuí-la a signos comuns. Existir é tão difícil. Existir é uma explosão de significados - que são tão difíceis de identificar, quanto mais nomear. Daí a gente fica assim todo meio largado, desnomeado.
Não é possível dar nome pra tudo que nos ocorre à existência; daí ela fica ao léu, desordenada. Só as palavras trazem ordem ao caos protuberante de ser e realizar. E quando elas nos deixam na mão? Estou me repetindo, eu sei. Não consigo ser coerente quando estou desvairada.
Só a gente mesmo conhece as estradas da nossa alma; 
Só a gente entende a nossa bagunça e seus motivos. Por isso que nossa existência nunca é completamente compreendida pelo outro. Ninguém conhece a gente do avesso, lá bem dentro do nosso interior. E por viver a vida sem que a gente compartilhe o de mais insondável que há em nós, parece que a gastamos ao passo de meias palavras; fadados a nunca fazer completo sentido. Como eu disse, é como só existir um pedaço de nós - o resto ignora-se porque não tem nome pra ele. Só nos damos conta do que tem nome.
Eu sou um grande desentendimento. Ninguém me entendeu. Tudo o que sou jamais chegará à completa compreensão de um semelhante. (Nenhum de nós nos mostraremos plenos a nenhum de nós.) Só Deus mesmo que viu minha alma. E é por isso que ele é Deus. Só com ele eu não me desentendo. É por isso que ele é Deus.

Tem gente que passa a vida inteira sem falar do que sente, abrir o peito, compartilhar do que tem por dentro. Eu, por minha vez, estou a todo tempo tentando atravessar a espessa e artificial faxada das pessoas e seus comportamentos. Quero logo saber o que está no profundo; tenho urgência de vencer o ralo; tenho urgência de intimidade. Sempre acho que o teatro social não é natural; que a pessoa está disfarçando seus instintos mais essenciais; que como eu ela está à espera de revelar seu coração. Mas acho que a maioria das pessoas, na verdade, são roboticamente naturais em sua desenvoltura social. Já assimilaram com tanta obediência as convenções interacionais que as exercem sem pestanejar. Sou só eu mesmo que de tanto cortejar a solidão virei meio bicho do mato. Sou uma atriz e tanto. Sei interpretar quem eu sou todo dia bem direitinho; faço meu papel de ser com diligência. Não desperto desconfiança.

Uma coisa é verdade: quem quer falar das coisas do sensível, da percepção à flor da pele, do imaginário livre, que fique pronto pra não fazer sentido na cabeça dos outros. Acho que isso na verdade é que é a loucura; ou alguma certa classificação dela - não fazer sentido no mundo do outro.
Às vezes choro porque a vida é overwhelming, não consigo descrevê-la, capturá-la, absorvê-la nessa mera alma humana. A vida mesmo não é humana, só podia ser divina. A existência me escapa à razão; não sei o que estou fazendo, não tenho manual, as demarcações são instáveis, embaçadas, facilmente deslocadas, dependentes de um grupo social delimitar. Quer dizer, quem diz quem a gente tem que ser é mais um bando de desconjurado na vida, tentando encontrar identidade e direção tanto quanto a gente. Que ironia!
Pois bem, pode anotar na prancheta aí, doutor, que eu vejo o mundo como poucos veem. A sociedade me é estranha e agressiva, não entendo pra quê tanta maldade, amargura, perversão. A vida às vezes é estranha. A morte é estranha. Talvez a vida após a morte seja estranha. Não! Depois da morte tudo fará sentido! Verei a Deus como ele é, e serei completo! Brada o meu coração com viva esperança.


Não há saídas para o limbo das meias palavras. Talvez um texto bem viajado de Clarice faça fazer sentido algo de profundo. Mas quem é que a entende? São poucos os que realmente a entenderam. Popular mesmo viram as frases banais (que na verdade não foram banais; qualquer clichê vindo de Clarice, desconfie). Quem entendeu o que Clarice escreveu viu a alma dela: alguém completa e urgentemente desesperada pelo sentido da vida, pelo sentido de ser. Enxergou no mundo o que ninguém mais enxergou. Fez das letras um breve alívio da pressão grave e doída de existir à perguntar o que afinal a vida é. Acho que eu vi um pouco da alma de Clarice. E vi a minha na dela.

Talvez a angústia pulsante de enriquecer de significado o ser seja só pra essa vida. Céu mesmo seria aquele lugar em que a linguagem não tem limite. Imagine! Cores, sons, signos diversos evocariam as mais indizíveis sensações e mensagens na imaginação; sem barreiras! Quero ir pra esse céu logo.
Mas por enquanto fico predizendo o céu fazendo prosa poética. É por isso que escrevo; pra ter vislumbres fugazes do céu linguístico que eu inventei e torço pra ser real. Enquanto isso preciso acreditar que alguém vai ler o que escrevi e me entender; vai visitar meu interior por alguns parágrafos; vai se fazer uma pergunta existencial qualquer depois de decifrar meus versos. Talvez se eu passar a vida toda a escrever, ao final dela, assim bem num final derradeiro, eu consiga dar um curto e comedido suspiro de satisfação de ter dito alguma coisa de profundo.

5 comentários:

  1. Poxa! Um dos melhores textos que já li sobre esse tema! Perfeito! Exato, abrangente! Amei, amei, amei! Pena que não dá pra compartilhar pro face. =/

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  2. Aaaahhh a limitação da linguagem!!! Agora mesmo me assaltou, e me vejo impotente diante da enxurrada de pensamentos que me ocorreram, os quais não posso expressar... Pelo menos posso dizer que tem um pouco da tua alma na minha agora, rs...
    Ah, e sei bem o que é ser uma desesperada por compreensão, afinal, tbm amo as palavras... e como as amo!
    Obrigada mais uma vez. Exultei novamente, laurinha... suas palavras me alimentam e sobretudo, me alegram.. Beijos, da sua amiga e fã.. Lu.

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  3. Santas são estas palavras que me fazem ler e perceber não estar sozinha ocm os sentimentos.
    Triste mesmo é quando usam uma palavra sua pra te acusar exatamente daquilo que vc quiz negar com ela,porque ninguém quer pensar no sentido de palavras novas, porque as palavras já estão enquadradas.
    Eu sempre temo falar sobre aquilo que é para mim muito especial, porque sei que minhas palavras vão vulgarizar meus sentimentos.
    Pra nossa sorte,a comunicação não se faz só por palavras.Podemos dizer exatamente as mesmas palavras pra quem nos conhece e nos ama e pra outra pessoa qualquer que será com certeza interpretada de modos diferentes.

    Beijo!

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  4. "Oh My God", Acredite, você me fez chorar! Muito bom... Muito bom, mesmo! Sinto que minha alma ficou leve!

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  5. '' Porque muito cruel é está condenado a significâncias rasas''.
    Quando leio isso me identifico tanto... porque nunca vou conseguir definir em palavras o que na verdade Deus é. Tudo será tão superficial, pouco, raso.

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